O anjo ancorado, obra de José Cardoso Pires, é nas palavras do próprio autor uma fábula. É uma história simples cuja acção se desenrola numa tarde. João, um homem da cidade, resolve ir fazer pesca submarina numa pequena aldeia nos arredores de Peniche, acompanhado por Guida, uma jovem com metade da sua idade, que ainda mal conhece.
Mal chegam à falésia são abordados por um rapazinho da aldeia que tenta logo fazer negócio com os forasteiros, propondo a venda de uma renda que a irmã terminará à pressa. Também um velhote que tenta caçar um pequeno perdigoto faz parte desta história, uma história repleta de contrastes. De um lado a despreocupação de João e Guida, claramente abastados, do outro lado os habitantes da pequena aldeia, vivendo à beira da miséria, dependentes dos humores do mar. Este contraste está também presente no próprio ritmo da narrativa: lento na de João e Guida, simbolizando as despreocupações, e mais acelerado na da população local, denotando a dificuldade de vida e a luta pela subsistência.
Uma história em que sobretudo se destacam as diferenças sociais e o desprezo dos abastados por aqueles que vivem privados de quase tudo.
“Neste meio tempo apareceu a rondar por ali um miúdo de São Romão, uma destas criaturas que trazem um casaco de homem a dar-lhes pelas canelas, a ponto de se julgar que andam nuas por baixo, só com aquilo.
O miúdo ficou de longe em face da cena que se estava a passar; e não ficou por ali por ver uma mulher a beijar um homem: isso é das tais coisas que acontecem quando menos se esperam; nem tão pouco porque se espantasse grandemente de ver uma senhora de calças e a fumar: passava por Peniche muito turista estrangeiro que fazia o mesmo ou ainda pior, e ele já tinha ido várias vezes a Peniche. Não, a verdade era outra. O garoto parara ali, sim, mas por uma razão muito dele: porque trazia um recado importante. Esperto como era, lá resolveu que o melhor que tinha a fazer era pôr-se de largo e só se apresentar quando tudo estivesse em ordem. Calma, portanto.
Se bem o pensou melhor o fez. E quando veio ao pé dos viajantes estendia uma amostra de renda na palma da mão. Era o recado.”
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