Numa gaveta, as fotos antigas e textos começam a transbordar. É um baú de memórias! Olhar imagens ou escrever sobre outras épocas é reviver um pouco das emoções e sentimentos experimentados. Dificilmente uma pessoa, mesmo com a saúde física ou mental abalada, consegue ficar imune às recordações eternizadas num livro, como este. Memórias de Pedra de Cleo Dias é um exemplo perfeito de como as memórias contribuem para a construção da identidade.
A memória pode ser entendida popularmente como a capacidade que o ser humano tem de conservar e relembrar experiências e informações relacionadas ao passado, sendo estas, parte de processos de interação de cada indivíduo com o seu meio.
A partir do início do século XX o conceito de memória passou a ser definido como um fenómeno social, na medida em que as relações entre os indivíduos são estabelecidas pelas formas em que os mesmos interagem entre si, através dos aspectos socioculturais, como por exemplo, nos ambientes: familiar, profissional, político, religioso, entre outros. Tais elementos são fundamentais na construção das memórias e, consequentemente, da história destes indivíduos. Citando Jacques Le Goff (2013) “Tal como o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e, simultaneamente, um nível elementar de elaboração histórica.” Assim, a memória também pode ser utilizada para reconstruir os fatos históricos a partir de resignificações individuais.
Numa escrita muito própria, impregnada de sentimento e emoção, nostalgia e esperança, Maria de Lurdes Dias, relata em “Memórias de Pedra” as memórias de tudo o que viveu e sentiu na pequena aldeia de Pai das Donas, onde cresceu. Memórias que como a própria escreve “se não forem resgatadas a tempo, acabarão por se diluir no esquecimento, como tantas outras das quais já não resta nem um simples vislumbre.”
São mais de 400 páginas, na sua maioria escritas em prosa, em que a autora parece que vai pintando com palavras cenários e situações. Mas também há algumas incursões pela poesia, como o poema “Daqui, desta janela”.
"Debruçada no peitoril
Da janela do tempo
Observo o horizonte
Que se estende à minha frente
Fecho os olhos por instantes
E observo o eterno ontem…
Revisito-me nos lugares distantes
Que me vivem na memória
Intocáveis e serenos
Tal como os deixei
O milheiral verde
Onde tanto labutei
Até ao limite das minhas forças
Que
Por tenras serem
Eram poucas…
Das tantas sementeiras
Batatas serôdias
Feijões mochos
E dos que subiam até ao céu…
Os olivais dispersos
Onde azeitonas geladas
A doerem-me nos dedos
Os corrimões das videiras
Ao fundo das quelhadas
O quintal dos mimos
O pomar sombrio
A adega e o alambique
No culminar da vindima
A eira das malhas do trigo
As casas das debulhas do milho
À luz do candeeiro no alto da trave
Os currais
O cheiro do estrume
A fumegar….
A casa da minha avó
O bordo da fogueira
Onde me sentava e me aquecia
Enquanto comia o caldo das couves
E ouvia histórias antigas
De homens e lobos
Na lonjura dos montes
Eram histórias simples
De meias verdades
De meias fantasias
Mas que tanto me encantavam
Esgravatando na memória
Encontro tantos tesouros
Está tudo lá
Inalterável
Como se o tempo não existisse…"
Quase todos os mosaicos de que se compõem este livro vêm acompanhados por uma fotografia como que a dar um enquadramento visual…
Memórias de pedra é um retrato da vida nas aldeias da Serra do Açor nas décadas de 70 e 80 do século XX. Vidas árduas em que as rotinas diárias eram ditadas pelas estações do ano e aquilo que em cada uma delas era necessário fazer para tirar da terra em socalcos e quelhadas o sustento para o dia-a-dia.
Mas não apenas as questões agrícolas são referidas neste belo mosaico da vida rural do século passado. Através dos relatos de Cleo Dias revivemos a matança do porco, o largo da aldeia como ponto de encontro, as vindimas, as festas, o cozer da broa, e outros tantos costumes que por força do êxodo rural e da modernização se foram perdendo no tempo.
“O tempo… sempre o mesmo tempo de que nos damos conta de já ter passado, quando nos olhamos ao espelho e lhe descobrimos o diâmetro da espessura. Ou nas rugas que escavaram socalcos na pele do rosto engelhado de uma velha, a debulhar memórias que estende ao sol… O tempo que nos escapa por entre os dedos, porque nos distancia das coisas. Não dos lugares, porque a esses podemos voltar sempre que nos apetecer. Apenas das coisas, porque os lugares, esses, a continuarem lá ainda que mergulhados na imperturbável quietude dos montes. Os mesmos lugares que fervilhavam de vida, porque pessoas mais novas do que nós agora e no entanto mais velhas do que nós a mexerem-se com ferramentas nas mãos e cestos e molhos às costas, frenéticos, e a tagarelarem alegrias e tristezas umas com as outras em lugares que se lá formos hoje, as não encontramos. De maneira que, só o vazio no lugar delas. Mas se ainda nos lembrarmos delas, podemos coloca-las nos seus lugares, e tudo outra vez como dantes! Tudo isto são coisas insignificantes… Talvez saudades. Sim, são saudades do que o tempo abocanhou e deixou para trás."
Memórias de Pedra é certamente um livro que merece a pena ser lido e constitui um importante contributo para a preservação da memória imaterial de todos os povos que habitaram e habitam a Serra do Açor.
Miriella de Vocht
Texto de apresentação do livro "Memórias de Pedra" na 27ª Feira do Livro de Arganil
Foi com grande alegria que no passado dia 06 de Abril assisti ao lançamento deste livro que tanto prazer me deu a escrever!
ResponderEliminarO livro foi o culminar de imensos pedidod para que o mesmo fosse feito, por parte dos meus leitores assíduos e não só, que tiveram contacto com vivências idênticas de norte a sul de Portugal e até das ilhas da Madeira e Açôres. Pelo que pude constatar, tirando termos, alguns usos e costumes de lugares tão distintos, na essência o POVO identifica-se com a maioria das coisas ali retratadas. Outra coisa que me dizem também, é que os levo a viajar no tempo e a voltar à infância e adolescência de quem me lê... Só por isso, já valeu a pena!
Quero agradecer a todos quantos tornaram este momento uma realidade, especialmente aos representantes das bibliotecas e Câmara Municipal de Arganil, a quem estou imensamente e humildemente grata. E, claro, a todo aquele público, maioritariamente composto por idosos que são, afinal de contas, aqueles a quem homenageio no meu livro para que os seus sacrifícios de suor e lágrimas bem como as pequenas alegrias, fiquem para sempre, assim, registadas. Eles merecem e nós também enquanto filhos de uma região hoje reconhecida por outros motivos... Sendo igualmente importantes. Temos lugares e vistas maravilhosos!
Bem hajam!