DIÁRIO
11 de Junho de 2018
Ao longo dos anos fiz várias tentativas de escrita de um diário. Mas nunca fui suficientemente persistente. Arrependo-me muito de não ter alcançado esse objetivo.
Enquanto adolescente tentei confidenciar os meus pequenos segredos a uma folha de papel que os guardaria, silenciosamente, sem admoestações à minha rebeldia.
Hoje sei que um diário, para além de útil, é uma importante escola para uma escrita mais complexa.
Por outro lado, é uma forma de nos conhecermos a nós próprios.
Para quem escreve, a memória é um objeto de trabalho indispensável. E, por essa razão, um diário é uma ferramenta valiosa.
Em todo o tipo de escrita nos revelamos por inteiro, num diário desnudamo-nos completamente.
Outro aspeto da questão, é o facto de se obrigar o coração e a mente ao esforço de descrever os acontecimentos sinteticamente, cingindo-os à sua essencialidade.
É um encorajamento ao bom uso de cada palavra.
Tem também a sua faceta libertadora. Pode ser uma terapia. A terapia do trabalho de escrita.
Os diários dos escritores não são um desabafo não premeditado.
Eles sabem que serão publicados. Alguns são mesmo a obra maior do autor. É o caso de Miguel Torga.
Já li vários diários. Presentemente estou a ler o de Virgínia Woolf. Tem sido considerado, por vários críticos, como um dos melhores do mundo.
Iniciei a sua leitura sem grande motivação, porém, já me deixei fascinar pelo dia a dia desta mulher.
Partilho uma curiosidade que me surpreende: a escritora usar o apelido do marido, Leonard Woolf.
Tudo no mundo da criatividade é muito subjetivo, muito pessoal e identitário. É algo que se cola ao indivíduo, é a sua segunda pele. Nasce com ele como o nome de origem.
Na minha opinião, a justificação para este caso invulgar é o facto de Virgínia Woolf depender psicologicamente do marido. Ela afirma que deposita nele uma confiança infantil. Ele é o seu amparo e protetor. Da circunferência que são os outros ele é o centro inviolável.
O casamento funciona com um eixo central. Assegura-lhe o equilíbrio possível, o sossego e a felicidade.
O Diário deixa transparecer a sua relação com ele. Não vivem uma paixão erótica. O amor assenta no companheirismo, no afeto, na admiração, respeito e estímulos mútuos.
Ela própria escreve: “ao fim de 25 anos não suportamos estar separados” e continua dizendo que ao mesmo tempo, se sentem “independentes, livres, harmoniosos. Dir-se-ia até que somos o casal mais feliz de Inglaterra”.
Virgínia Woolf escreveu um diário enquanto adolescente, tinha 15 anos e, apenas, durante seis semanas.
Mas é a partir de 1915, com 33 anos, que retoma este tipo de escrita com alguma regularidade e fá-lo ao longo de vinte e seis anos. No início da Primeira Guerra Mundial até aos começos da Segunda.
O último foi escrito quatro dias antes de se deitar a afogar, a 28 de março de 1941, quando tinha 59 anos.
Em 1953, o marido, proprietário de uma editora, decidiu publicar excertos de vinte seis dos trinta cadernos que compõem o Diário, centrado sobretudo em dar uma imagem do processo criativo da mulher.
Mais tarde Anne Olivier Bell e o marido, sobrinhos da escritora, publicaram o Diário na íntegra, com todas as anotações da autora.
Virgínia Woolf revela-se uma pessoa extremamente contraditória, com grandes alterações de humor, resultado de frequentes crises depressivas.
A sua escrita é muito formal, mas perfeita. Ou não fosse ela uma autora de excelência.
Mesmo tratando-se de um Diário admite que um escritor deve controlar o impulso criativo até ao rigor da perfeição, sem “deixar fluir os conteúdos da mente.”
Apesar das constantes alterações de humor é muito contida na exteriorização dos sentimentos. Nunca deixou transparecer as suas ideias suicidas.
Porém, tanto aparenta uma extrema felicidade, como se queixa de melancolia e depressão.
Relata o seu quotidiano de muita leitura e escrita. Para além da vida intelectual e criativa, conta também as reuniões com os amigos, ocasiões de convívio social, encontros com figuras políticas ou eventos nos círculos feministas de que fazia parte.
São também assunto os conflitos com as criadas e os críticos, a editora que fundou com o marido, a vida em Londres, parcialmente arrasada pelas bombas nazis, as paisagens aldeãs e campestres. Enfim, tudo o que fazia parte do seu mundo é-nos dado a conhecer através do Diário.
Apresenta-nos também toda a obra que simultaneamente vai publicando: os contos, os ensaios e os romances.
Em dezembro de 1938 diz que acha a vida “empolgante”. Em maio de 1940 declara:” Desejo viver mais dez anos”.
A 26 de janeiro de 1941, paira uma nuvem sobre ela. Mas ainda tem energia para optar pela terapia do trabalho ou seja: escrever, estimular a criatividade.
Contudo, três meses depois a 28 de março de 1941, o Diário interrompe-se e a vida também.
Uma mulher que apesar de viver desafogadamente, ter um casamento sólido e sucesso literário, não resiste às sucessivas crises depressivas.
Ela admitiu que escreveu o Diário para mais tarde, por volta dos sessenta anos, construir um livro de memórias.
Projeto que não chegou a realizar.
Transcrevo um breve excerto do que escreveu ao marido: “Tenho a certeza de que vou enlouquecer outra vez. E sinto-me incapaz de enfrentar de novo um desses terríveis períodos. Começo a ouvir vozes e não consigo concentrar-me (…).
Não posso destruir a tua vida por mais tempo (…).
Não creio que dois seres pudessem ser mais felizes do que o que nós o fomos.”
Maria Leonarda Tavares
Texto apresentado no Serão dos Amigos de Ler, no passado dia 11 de Junho.
“Amigos de Ler” é um clube de leitores livres e apaixonados pelas suas leituras. Reunimos-nos na segunda segunda-feira do mês, às 21:00 horas, na Biblioteca Municipal de Arganil | Miguel Torga, com os mais variados pretextos – uma ideia, um autor, uma cor, uma página... Memórias dos textos que temos lido. Com chá, licores e muitos livros em cima da nossa mesa.