De vez em quando, coisas despropositadas a povoarem-me a
memória. Restos de colecção de tempos de outrora a intrometerem-se e a
misturarem-se com as coisas de agora. Não roupas nem móveis. Episódios
longínquos e inconformados, porque atirados ao vão do esquecimento. Por
exemplo, uma cesta de verga à cabeça de uma mulher, tapada com um pano de
xadrez branco e encarnado a surgir lá ao longe no caminho em que fetos altos a
engolirem-lhe o corpo. Apenas a cesta apoiada na rodilha de trapos e à medida
que se aproximava, uma nuvem invisível com cheiro a guisado a poluir o aroma
dos pinheiros. Seria perto do meio-dia, porque ao meio-dia horas de almoço
para quem ao romper da aurora se tinha já feito ao caminho. Isto, porque o
lugar onde as heranças das terras de cultivo, perto das nascentes da serra numa
fartura de águas porque as sementeiras e o renovo a carecerem de amiúdes regas,
mas, está visto, que distantes das casas da aldeia. Portanto, meio dia de
trabalho no corpo e sonoros roncos a protestarem do vazio do estômago. De
maneira que, chegada a cesta, um outro ânimo a iluminar o rosto onde o suor em
bica e que um lenço puxado do bolso se apressava em limpar. Toalha estendida no
chão de uma assentada de sombra e coisas que se tiravam da cesta a encherem-na
de farturas variadas para além do guisado de bacalhau que já se havia antes
anunciado. E num instante, todos sentados de roda do farnel e entre uma garfada
e um pedaço de broa molhado no molho cor de laranja por causa do colorau, uma
estória ou uma chalaça a puxar o riso fácil de quem, para ser feliz, não
precisava de muito mais que a dureza da vida herdada de geração em geração
desde tempos ancestrais. Não conheciam nem ambicionavam outra visto que aquela
já lhes ocupava a quase totalidade da existência. Aliás, a história do
"Corecho" que a minha avó me contava vezes sem conta, era um bom
exemplo disso mesmo - nem tempo para arranjar uma esposa o pobre do homem tinha
- pois que da sementeira até à recolha do renovo, era uma trabalheira que
ninguém fazia ideia! Ele era o sacho, a assenta e a rega... os molhos de mato
para os currais onde o estrume... a azeitona... as batatas... as videiras... os
feijões e o milho...
Texto da autoria de Cleo (Lurdes Dias),
natural da aldeia de Pai das Donas
Uma honra. Obrigado!
ResponderEliminarObrigada pela sua colaboração. Conteúdos como este ajudam a enriquecer o nosso blog. A partilha de textos que remetem para a nossa cultura e memória colectiva são uma mais valia.
Eliminar