quinta-feira, 23 de abril de 2020

Pássaros por Maria Leonarda Tavares

PÁSSAROS

Este foi o tema escolhido pelos Amigos de Ler para o mês de abril. Associamos as aves à liberdade. 
Porém, há um mês, não sabíamos que o Covid 19 nos havia de enclausurar. Um minúsculo vírus invisível, aparentemente insignificante, aprisionou-nos e fragilizou-nos. 
Este ano, nas comemorações do 25 de abril, os heróis da revolução são os profissionais de saúde e todos os outros que também lutam, quer seja na linha da frente ou na retaguarda, contra a dura realidade da pandemia. 
A liberdade é algo de muito importante, contudo, a que permanece e depende de nós, é a interior, a do pensamento, a que vem de dentro e vive connosco. 
Tem-nos sido recomendado uma boa terapia para a alma: a leitura. 
Entre outros livros, volto diariamente a passagens do Diário de Etty Hillesun. 
Uma rapariga judia, holandesa que aos vinte e nove anos foi violentamente morta no Campo de Concentração de Auschewitz, a trinta de novembro de 1943. 
Esta jovem dá-nos a maior lição de liberdade interior, de força, de coragem e de solidariedade num dos tempos mais horríveis da História de Humanidade. 
Não resisto a partilhar alguns excertos dos seus escritos em Auschewitz pouco tempo antes de morrer. 

“Queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é realmente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de mim, costumo caminhar, a passo enérgico, ao longo do arame farpado e, nessas alturas, volta a assolar-me o sentimento – não consigo evitá-lo, as coisas são como são, existe uma força elementar – de que esta vida é algo de glorioso e magnífico e que, um dia, teremos de construir um mundo totalmente novo. 
(…) Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir. 
(…) Gostava tanto de continuar a viver para transmitir na nova era toda a humanidade que guardo dentro de mim, apesar de tudo aquilo com que convivo diariamente. 
(…) Mesmo que só nos reste uma rua estreita, por onde teremos de caminhar, por cima da rua existe todavia o céu inteiro. 
(…) E no final de cada dia, sinto a necessidade de dizer: A vida é muito bela, apesar de tudo é muito bela.” 

Como escreveu Filipe Condado: “Uma vida interrompida? Não, uma vida diluída por toda a Humanidade.” 
Não sei quem é o autor desta frase mas aplica-se à leitura do “Diário de Etty: “Certos livros deixam-nos o barco depois da viagem”. 
Etty Hillesum conseguiu encontrar os diamantes escondidos no aterro de sofrimento do campo de concentração. 
A sua força interior impediu-a de se deixar aprisionar pelo arame farpado e por todos os horrores que viveu até à morte. 
A liberdade de pensamento permitiu-lhe voar por um céu azul de onde avistava toda a beleza que existia para além do mísero catre onde passou os últimos tempos. 
Neste momento somos todos peregrinos nos dias inesperados de uma enorme incerteza. O tempo de entendermos a cumplicidade de sermos irmãos na aventura do caminho. 
A natureza está em flor e convida-nos a abraçar a nossa vulnerabilidade num percurso de reconciliação com a esperança. 
Podemos estar de joelhos, mas a grande corrente da vida continua a fluir e estende-nos a mão. 
Ao escrever estas palavras, penso em muitas pessoas. Carrego a dor de algumas e admiro a solidariedade de outras. 
Quanta serenidade é necessária para dormir sem pesadelos! Quanta coragem para aceitar o presente como um grande desafio que a vida nos coloca! 
Agora que os dias estão a crescer, que a luz se prolonga até mais tarde, muitos dos habitantes do planeta estão fechados em casa. 
As nossas janelas são atravessadas por muitos olhares que se cruzam com todos os outros. Buscam consolo, companhia, ânimo. 
Contemplar a natureza faz bem. A natureza que nasce da terra, se estende pelo céu, pelos oceanos, pelo mundo inteiro. Há vida em cada pedaço de chão. Não nos afastemos do essencial: a vida. 
Se pudesse criar um dia novo, oferecia-o. Era merecido. Sentirmos a alegria limpa do convívio, da proximidade, dos risos, dos abraços, muitos abraços. 
Tudo há de voltar. Por favor, esperem. 
As andorinhas regressaram. Todos os pássaros, laboriosamente, nidificam. 
Estas pequenas criaturas enchem o cenário de tantos lugares. 
Primavera é uma palavra feita de pássaros. 
Os seus limites não são infinitos, mas o céu é muito grande. Está mais limpo. Nós, eles e todas as criaturas respiramos um ar mais puro. 
Eles não sabem o que é o Covid 19. Não fazem perguntas, nem esperam respostas. 
Continuam a voar de asas abertas, livres como o vento. 
E nós precisamos de ter a humildade de reaprender com a natureza. 

Maria Leonarda Tavares

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