quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Tempo para a poesia: Dia de Todos os Santos

 

The Forerunners of Christ with Saints and Martyrs de Fra Angelico

Dia de Todos-os-Santos

Supõe que morri
(Aos mortos se escreve também algumas vezes).
Não sou de cá.
O que me dizem estranho
E ouço o que não há.
Assim, talvez, como estrangeiro,
Encontres palavras que me interessem,
Saibas dar-me o que me tarda...
coisas perdidas que procuro
e talvez se possam dar
aos que partiram e esqueceram
e, por isso,
se lhes oferece o resto de tudo
sem mesmo se saber
que alguma coisa é dada.

Supõe que morri e diz
todas as verdades que se dão aos mortos
o que se confessa a quem não ouve
e espera resposta de ninguém ...

Dizem que os deuses morreram:
Sou da raça deles
à espera de Deus.

                                José Blanc de Portugal

Amor constante para além da morte

Pode fechar-me os olhos a derradeira
sombra que de mim leva o branco dia,
e livrar de tudo o que prendia
a alma ansiosa, a hora que se abeira;

mas não deixará na margem da ribeira
a memória dos sítios onde ardia:
minha chama nada na água fria
e a dura lei enfrenta altaneira.

Alma de que todo um deus foi prisão,
veias onde tanto fogo foi gerado,
medulas em gloriosa combustão:

o corpo deixará, não seu cuidado;
cinzas hão-de ser, mas com coração;
serão pó, sim, mas pó apaixonado.

                        Francisco de Quevedo (1580-1645)
                        Tradução: António Simões

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