sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A arte do silêncio

Pode parecer paradoxal analisar a literatura em termos de silêncio. A literatura faz-nos saber, ver, ouvir e sentir através das palavras, expressa e comunica ideias; contrariamente o silêncio é a ausência de fala, barulho ou ruído. O silêncio sugere mudez, quietude, obscuridade e sigilo. Não importa o quão anulante o termo e as suas conexões possam parecer, é importante lembrar que o silêncio é ouro. De facto o silêncio é uma comodidade na literatura, tem uma linguagem própria. Diz-nos o antropólogo James Hall que “a linguagem do silêncio é uma tradução de uma série de comunicações contextuais complexas e não-verbais em palavras”. Não significa apenas que as pessoas comunicam entre si de forma não-verbal, mas que existe um universo inteiro de comportamentos inexplorados, não examinados.

O silêncio funciona fora da perceção consciente e em justaposição às palavras.

Claro que em literatura a ausência de palavras não existe. No entanto a forma como se escreve ou descreve algo pode nos traduzir a noção de silêncio.

Para este serão a minha escolha de leitura recaiu sobre o livro “As pequenas memórias” de José Saramago.

Publicado em 2006 é, sem rigor cronológico, a autobiografia do escritor José Saramago e abrange o período entre os quatro e os quinze anos da sua vida.

Logo nas primeiras páginas Saramago partilha um poema por ele escrito enquanto adolescente. Protopoema, onde é clara a forma como a palavra pode dar a ideia de som ou a ideia de silêncio:

“Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me parece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim ou para mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória, apenas, mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre, e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.”
O poema dá-nos uma ideia de silêncio pacífico e tranquilo. No entanto nem sempre o silêncio transparece esses sentimentos. Mais a frente quando Saramago recorda um pesadelo recorrente escreve assim: “aquele pesadelo recorrente em que me via encerrado num quarto de forma triangular onde não havia móveis, nem portas, nem janelas, e a um canto dele «qualquer coisa» (…) que pouco a pouco ia aumentando de tamanho enquanto uma música soava, sempre a mesma, e tudo aquilo crescia e crescia até me fazer recuar para o último recanto onde finalmente despertava, aflito, sufocado, coberto de suor, no tenebroso silêncio da noite.”

Noutro episódio Saramago recorda alguns episódios de pesca. No rio perto da casa dos avós ou um pouco mais longe, no Tejo. Descreve o que para si é o silêncio mais profundo:

“Voltei ao sítio, já o Sol se pusera, lancei o anzol e esperei. Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci.”

Este episódio relatado em “As pequenas memórias” foi transformado num livro infanto-juvenil com o nome “O silêncio da água”, ilustrado por Manuel Estrada e publicado pela Editorial Caminho em 2011.

 Miriella de Vocht

O texto acima publicado foi o meu contributo para o serão dos Amigos de Ler de fevereiro, que teve como tema a palavra SILÊNCIO.

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